quinta-feira, 21 de abril de 2011

Nasci pra ser tio

Quem conheceu minha mãe, a explosiva e brilhante Eliana Dalva, costuma dizer que me pareço muito com ela. Esta é a primeira vez que falo de mamãe aqui neste espaço, mas podem se acostumar; ela será figurinha vez ou outra citada. Dela herdei a risada escancarada, os olhos amendoados, a facilidade para engordar (e também para emagrecer, quando quero), as mudanças repentinas de humor (ô!), a vontade de trabalhar, a língua ferina e às vezes traiçoeira. Só para citar algumas coisas - se tudo isso já não parecer bastante!

Parando para pensar um pouco mais, vejo que guardo em meus genes outras marcas fortes de quem me pôs no mundo. E são coisas que vão além da aparência ou do gestual. Mamãe não nasceu para ser mãe. E escrevo isso sem um pingo de dor, tristeza ou remorso, porque sei que é a verdade. E, de lá de onde ela me vê agora, tenho certeza que não reprovaria essa verdade revelada ao mundo.

Mamãe era uma mulher liberta de pequenas convenções. Infelizmente, não sou porta-voz de suas lembranças juvenis, porque elas nunca me foram confidenciadas. Mas por tudo que aprendi sobre ela, posso dizer, com todas as letras, que minha mãe nasceu com a vocação de ser, pura e simplesmente, a "Tia Nana" dos meus primos e primas.

A Tia Nana do puxa-puxa brilhante e açucarado que minhas primas tanto falam, e que só de ouvir falar, salivo de vontade. A tia que ensinava a falar palavrão enquanto as minhas tias - mães das minhas primas -, teimavam em rezar pela cartilha do correto bom costume. Pausa para uma constatação: criança não gosta de regra; criança gosta de espaço, de horizonte. Criança quer, sim, aprender. Mas quer aprender com prazer. E, deste modo, mamãe sabia ensinar.

Mamãe era a tia das paródias musicais, dos bombons permitidos em substituição às refeições, da não necessidade de tantos banhos. Com a Tia Nana, a casa se enchia de alegria; tinha música, tinha dança, tinha liberdade. Mamãe sabia dar cor às imaginações dos sobrinhos. Não vivi este período (porque depois que eu nasci, a Tia Nana teve tanto trabalho, que talvez tenha sorrido menos...), mas toda vez que ouço os relatos da primaiada, me encanto - e sinto vontade de ter sido sobrinho da minha própria mãe!

Mamãe não era a mais beatas das irmãs. Longe disso. Mas acreditava que Deus pode estar guardado dentro de cada um de nós. Que Ele mora no pensamento, na boa vontade, nos sentimentos mais puros do ser humano. Nisso me pareço com ela, apesar da criação católico-fervorosa que tive. Por outro lado, mamãe sabia despertar o ziza dentro das pessoas. Cá para nós, ela também tinha um diabinho aferrolhado, que quando inventava de se desprender, era capaz de nos fazer ajoelhar e rezar pela paz mundial.

Ter filhos deve ser tarefa muito complicada. Complicada e dolorida, ainda mais para alguém que, por mais que envelhecesse, encarcerava um espírito de juventude, um sopro de vitalidade que divergia das angustiantes tarefas da maternidade. Tia Nana era assim. Não estou aqui dizendo que mamãe tenha cumprido mal seu papel. Não é isso. Mas acho que o papel de tia lhe caía melhor.

É por essas, e outras, que aplaudo minhas semelhanças com a mamãe. Como ela, me sinto um espírito livre; quero abraçar o mundo, quero falar outras línguas, quero ir longe e voltar com a certeza de que tenho com quem dividir histórias. Seguirei o rastro da Estrela Dalva quando encontrar um céu para formar minha constelação, quando ao meu lado reunir os melhores amigos para rir das besteiras da juventude. Quero pegar meus sobrinhos no colo, sentar no chão e brincar com eles. Quero vê-los riscando as primeiras letras no papel e - vez ou outra - deixá-los rabiscar a casa, mesmo que depois, reclamando da vida, eu tenha que esfregar as paredes com bucha e sabão.

Desejo, do fundo do meu coração, ser como a mamãe. Quero não ter o compromisso de curar dores de barriga após oferecer chocolate (ou puxa-puxa) às crianças. Não quero ter que me preocupar com o horário da escola dos pequenos se, num belo dia, decidir que vamos comer pipoca à meia-noite. Quero ajudar a ensinar, sugerir livros, boas viagens. Quero entoar cantigas, fazer paródias, rir de pequenas travessuras sendo cúmplice de todas elas - afinal, não precisarei ser tão rigoroso. Quero viajar junto e me esbaldar com as crianças - mas tendo, à noite, a certeza do meu sono tranquilo, porque elas terão pai e mãe para colocá-las na cama.

Aos 54 anos, quero brindar minha vida, minha carreira, quero afagar as crianças crescidas da família. Quero olhar para minha juventude e suspirar de saudade e felicidade, enxergar nos sobrinhos os bons ensinamentos que dei e ver que, com as crianças, me mantive jovem de espírito. Por fim, não me perguntem: "e filhos, você não quer?". Sinceramente, não. Está aí mais uma - e talvez a mais íntima - das semelhanças com a mamãe: nasci pra ser tio. Simplesmente, e com todo carinho, o "Tio Dudu".


3 comentários:

  1. E se o TIO DUDU for para os pequenos (e pequenas) de nossa família ao menos a metade do que a TIA NANA foi pra gente, vc será um tio e TANTO! :-)
    Que saudades eu tenho dessa tia, que adoçava nossa vida com um puxa-puxa tão doce quanto ela mesma podia ser quando queria, e ainda assim, bem menos brilhante do que ela sempre foi!
    SAUDADE DEMAIS!

    ResponderExcluir
  2. Aplausos. Você sabe escancarar o coração como poucos. Beijos!

    ResponderExcluir