segunda-feira, 18 de abril de 2011

Preciso me casar

"- Mamãe, preciso me casar!". Era assim, sem cerimônia alguma, e com a língua desenfreada, tropeçando nas sílabas, que Mariazinha anunciava sua decisão à progenitora. Fosse ela menos menina, talvez a mãe lhe desse algum fio de atenção. Mas não. Tinha apenas dez anos, e a euforia típica de criança logo passaria - pelo menos assim pensava a mãe, que se casara bem cedo, aos 16, por imposição do pai.

Dois anos mais tarde, Mariazinha retornou à mesma sala de estar, entre os sofás vermelhos e a mesa de centro de mogno, com o discurso mais uma vez ignorado. "- Preciso me casar, mamãe!". Já nesta idade, a pequena flertava com os rapagotes da escola. Tinha, era bem verdade, três "namorados" concomitantes. De Pedro, admirava os olhos; de Lucas, os cabelos ondulados; Joaquim, por sua vez, chamava sua atenção por ser o mais alto da turma, e também um ano mais velho.

Aos 15 anos, Mariazinha - ou "Mari", como a turma do colegial lhe apelidara - descobriu o prazer. De tanto ouvir as queixas da mãe, de que havia se casado muito cedo e que, por isso, havia "deixado escapar a chance de conhecer outros beijos, peles e suores" que não fossem os do marido, a adolescente se deixou seduzir por Paulo e com ele viveu sua primeira noite. Bem da verdade, Paulo é quem fora seduzido pelos cachos ruivos e pelo sorriso amplo que Maria tinha. Ela sabia como usar a beleza a seu favor. Mas no íntimo, guardava a sentença: "- Preciso me casar!".

Todo mês de maio era sagrado. Lá ia Mariazinha na catedral da cidade, nas paróquias mais concorridas, nos cerimoniais mais sofisticados, à procura das listas de nubentes. Fossem eles quem fossem, lá estaria ela: vestido de cetim rosa, laço na cabeça (às vezes substituído por uma longa trança), sapatos de salto alto e uma pequena bolsa de mão - para guardar o lenço que lhe enxugaria o rosto. Por 40 anos, não faltou a um casamento sequer das redondezas. Às vezes, emendava uma cerimônia à outra, com pequena pausa para retocar o rímel borrado do enlace anterior.

Dona Maria já era conhecida de todos os padres, presbíteros, cônegos e ministros do matrimônio. Sem ela entre os convidados, algumas noivas nem sequer entravam na igreja. Rodou a fama de ser "pé quente". "- Casamento com Dona Mariazinha é casamento para a vida toda!", garantiam as fuxiqueiras da diocese. Todas casadas. Menos Maria. Ela, aliás, já havia perdido as contas de quantos croquis desenhara, quantos quilômetros de véus arrastara, quantos buquês arremessara em bodas imaginárias. Já estava com 60 anos, mas não perdia a mania de tropeçar nas sílabas ao dizer, agora às colegas (a mãe havia falecido dez anos antes. Dizem que por desgosto de ter uma filha solteirona): "Preciso me casar!".

Num belo domingo, passeando pelo calçadão, apressada que só, Maria tropeçou em um rapaz que aparentava uns 30 anos. Tinha os cabelos pretos, olhos cor de jabuticaba, sobrancelhas cerradas como uma nuvem prestes a desabar em tempestade. Corpo musculoso, tez morena, voz grave e firme. Trocaram um breve olhar, logo depois telefones, e passaram a se falar.

"- Que bobeira! Pode ser meu filho", repetia ela, para tentar convencer-se de que o acelerar do coração nada mais era que a arritmia corriqueira. Mas não era o bastante. Bastaram dez dias; Maria estava entregue à mais avassaladora paixão. Nos braços do amado, não havia tempo, não havia rugas, não havia estrias em seu corpo que lhe fizessem recordar os anos passados. Eram ele e ela. Só os dois. Amantes, bocas ávidas por beijos longos e corpos que pareciam sedentos um do outro. Não havia a diferença de idade nem de ritmo. Nem da arritmia cardíaca ela se lembrava mais.

Maria abandonou as cores sóbrias, passou a frequentar o salão de beleza dia sim, dia não. No fundo da alma, palpitava a certeza "- Agora vou me casar". E essa sensação se repetiu, dia após dia, nos dez anos seguintes. No aniversário de 70 anos, Maria ganhou um anel de brilhantes do amado. Eram exatos dez diamantes - um para cada ano de convivência. E ali, aos pés da cama, num amanhecer de sábado em primavera, finalmente Maria ouviu a frase que tanto ecoou em sua mente por seis décadas. "Quer se casar comigo?"

"- É um sonho!", sussurrou ela. As mãos, trêmulas em decorrência do Parkinson, fraquejaram. A voz falhou. Os olhos lacrimejaram e parecia faltar-lhe o ar para emitir um monossílabo que fosse. Em fração de segundos, Maria viu-se Mariazinha, adentrando a catedral com um longo véu branco. Como em todos os sonhos de outrora, o vestido com longa cauda lhe marcaria o derrière e deixaria parte das pernas à mostra. Nas mãos, um buquê de tulipas e flores campestres. Tudo isso relampagueava em sua cabeça enquanto os pulmões buscavam um mísero feixe de ar que lhe permitisse dizer o "sim" de sua vida.

Viu, ainda, os olhos de esperança do companheiro se transformando em feição de preocupação. Ela sabia bem o porquê. Já havia sentido todos aqueles sintomas, como se o ar sumisse e tudo ao seu redor estivesse desfragmentando. Maria foi se deitando, e com o anel de casamento em mãos, recostou-se sobre os travesseiros, deu um breve e sincero sorriso, e com toda gratidão que lhe inundava o espírito, usou a força que lhe restava para declinar. "Me sinto honrada, mas não posso me casar". E se foi.

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