quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Carlos, o homem do espelho

Após um exaustivo dia de trabalho, ela parou em frente ao espelho para arrumar os cabelos. Estavam desalinhados, daquele modo que só uma mulher à beira de um ataque de nervos sabe como é. O batom já gasto, as olheiras marcando os olhos, tudo estava ali, nítido. Mas não havia só isso no reflexo. Havia um homem. E ele a olhava fixamente.

Corre de lá, corre de cá. O trabalho, naquela noite, era tirar do presidente alguma frase que indicasse seu futuro político. A aglomeração em torno do político era tamanha, que a caneta saltou-lhe das mãos ao esbarrar em um deputado. Abaixou-se. Tocou o objeto. Mas, sobre suas mãos, estavam as mãos dele: o homem do espelho. Moreno, alto, camisa verde que marcava o dorso. Cabelos levemente despenteados. Sorriso largo, mãos grandes. Sorriram, mas ela recuou desviando o olhar. Voltou a trabalhar.

Passaram-se alguns minutos e ela, já à espera do colega que lhe renderia o expediente, sentia-se monitorada por aqueles olhos castanhos. Como um totem onipresente naquele salão de eventos, estava o mesmo rapaz. Com os mesmos olhos, o sorriso que escapava pelo canto da boca, ele a espreitava em todo canto. A situação era, ao mesmo tempo, incômoda e instigante. Mas ela decidiu desviar e, para não sucumbir ao cansaço - já passava das 21 horas, e estava de pé desde as 5 -, decidiu lavar o rosto.

Bastou que entrasse no banheiro, aquele homem veio atrás. Não importava que recinto era aquele, tampouco a multidão que lá fora se espremia. O presidente resolvera falar de economia. Os puxa-sacos palacianos o aplaudiam efusivamente, de modo que o barulho impedia que qualquer grito ou gesto de fuga fosse percebido pelos convidados. Ela abaixou-se para lavar o rosto. Fingiu não se dar conta daquela presença masculina, imponente. Ele, por sua vez, foi ao box fazer suas necessidades (que outra necessidade haveria, num banheiro pequeno, se não seduzir aquela que fora escolhida a presa da noite?) - detalhe: com a porta aberta.

Terminada a atuação no box, ele manteve a calça desabotoada. Aproximaram-se. Ele percorria o dorso com a mão direita como se mapeasse o trajeto para que ela seguisse. Ela, trêmula, acompanhava com os olhos. Tocaram-se. Ele a puxou com força pela cintura e pediu que cedesse. Ela ameaçou sucumbir; respirou fundo. Os aplausos ao presidente, lá fora, a chamavam ao compromisso profissional. Ele tomou seu crachá às mãos. Susurrou seu nome. Sorriu malicioso.

Num insight, ela lembrou-se, ao menos, de perguntar o nome daquele homem que a acompanhara por toda a noite. "- Carlos", respondeu, breve e grave. Para depois, completar: "- Você trabalha com Áureo... bravo. Difícil. Homem rígido. Você deve ter muito trabalho". Mal sabia ele que o maior trabalho, naquele instante, era não deixar-se levar pelos instintos que a corroíam a alma. Carlos a tomou nos braços. Ela, vencendo o medo, tocou-o com desejo. Nunca houvera situação semelhante.

Nem jamais voltou a haver. Carlos pediu o telefone, sorriu pela última vez, arrumou o cabelo mirando-se no espelho e prometeu ligar. Abriu a porta e a aura de malícia e transgressão foi rompida pelo falatório do outro lado da parede. A fala do presidente terminou. Acabaram as bajulações. Acabou também a paz daquela garota da zona norte, que nunca mais esbarrou e nem sabia onde procurar o homem que roubara-lhe a paz e a compostura profissional. Carlos sumiu.

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